Ler

"Uma pessoa olha em volta na praia e não vê um inocente lusitano a ler um livro. Podia ser um daqueles livros leves, ou ultraleves, (...) mas, caramba, seria um livro, um livrinho, essa coisa recheada de páginas e, com sorte, de algumas ideias. Nada. Poderia afirmar-se que, este ano, as praias a sul estão vazias por causa da crise mas, caramba, sempre sobra alguém, sempre sobram umas famílias portuguesas que teimosamente insistem em desafiar a recessão e em investir numa dose de gambas cozidas à beira-mar. Ou numa sandes de atum. Nisso, investem. O que não investem é um cêntimo em literatura ou em pensamento.

Todos os anos os jornais e revistas gastam as páginas a elaborar questionários sobre os livros de férias. (...)
E todos os anos as respostas levar-nos-iam a pensar que Portugal tem uma das sociedades mais cultas da Europa, porque as respostas são do melhor: ele é Pessoa, ele é Eça, ele é Saramago, ele é Lobo, ele é Sophia (...), ele é tudo.
Depois, vai-se a ver, na esplanada e no café, (...), na piscina ou na rua, o que é que o português tem na mão é uma revista com fotografias de página inteira e duas linhas de texto.

O que ele (ela, elas é que lêem, eles nem tentam) está a ler é a entrevista do futebolista casado com a modelo que afirma o nosso casamento está para durar ou este filho é o sonho (...)
E está feita a literatura. Nem um Paulo Coelho, para disfarçar. (...)
Durante o ano, o português já lê menos de um livro (...), sentir-se-ia desonrado e traído no seu direito a férias pagas se obrigasse a trabalhar uma ínfima parte do seu corpo. Por isso, os neurónios descansam à sombra da bananeira (...)

Alguns destes neurónios nunca trabalharam (...) e preferem esta vida a qualquer tentativa de raciocínio inteligente. (...)

Não consigo ler, deixei de ler há anos e nunca mais recomecei, dizem com certo orgulho (...) Esta desolação faz com que uma leitora compulsiva se sinta muito só na praia, rodeada da "lux" e da "Caras" (...) e de títulos vermelhos: somos apenas bons amigos, ou as férias do casal em Fortaleza (...)
Os portugueses não percebem que, enquanto não aprenderem a ler, aprenderem português e matemática, aprenderem a pensar e abstrair, nunca passarão disto, da crise, da baixa produtividade, do subsídio, (...)
Não percebem que têm de se esforçar, que ler é como andar de "jet-ski", é preciso aprender, tentar, errar, tentar de novo, até chegar ao prazer de ler. (...)" (O Falso Livro de Férias, de Clara Ferreira Alves)

Não conhecia este texto da jornalista e escritora Clara Ferreira Alves. Descobri-o por acaso. Posso dizer que me caiu dentro do meu ouvido de maneira inesperada. Enquanto ouvia a declamação do texto na rádio, lembrei-me do expresso e do "Repórter de Guerra" de Luís Castro, as minhas companhias nos poucos dias de férias que desfrutei. O semanário encheu-se de areia, bem como o livro. As folhas sempre as voltas por causa da brisa maritima irritavam-me e impediam-me de efectuar uma leitura calma.....Mas essas mesmas folhas permitiram-me estabelcer diversos contactos com alguns veraneantes. Dei por mim diversas vezes a sorrir para o vizinho do chapéu ao lado que também lia a mesma reportagem do semanário...ou através de olhares dei por mim a tentar explicar o porquê da escolha de tal livro.....Talvez tenha tido sorte. Pois consegui partilhar com mais gente o gosto pela leitura.

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